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Opinião

Francisco Mota Ferreira

Quando a realidade ultrapassa a ficção

27 de novembro de 2023

Na semana passada falei-vos aqui de uma série norueguesa (The Architect) que relata as dificuldades em obter uma casa em Oslo, com as pessoas a fazerem o possível, o impossível e até o impensável para conseguirem ter um tecto para viver.

Há uns tempos atrás, na sequência de uma reportagem que passou há uns meses na SIC Notícias, dei-vos a conhecer o fenómeno do hot bedding (cama quente, numa tradução mais livre), algo que, pelos vistos é comum na Austrália e que se traduz na possibilidade de dividir a cama com um estranho, mediante o pagamento mensal a quem cede a cama, o quarto, a casa (e, quem sabe, algo mais).

Entre a ficção da série do FilmIn e a realidade australiana, achei, sinceramente, que estávamos naquele campo em que a imaginação está longe de ser o limite e que a realidade, no que, pelo menos na Habitação diz respeito, tem tendência a ultrapassar a ficção e mostrar que a audácia de arrendar uma mera garagem como se de um quarto ou uma casa se tratasse (como vemos por aqui em Portugal) é, pelos vistos, coisa de meninos.

Recentemente, deram-me a conhecer uma outra realidade que em nada fica atrás da audácia australiana. Pelos vistos, no Canadá, mais concretamente em Toronto, as coisas também não devem estar fáceis, uma vez que já aparecem anúncios em que os proprietários se dispõem a arrendar metade das próprias camas.

O caso, divulgado pela revista NiT, explicava que o invulgar deste anúncio – para além do preço pedido (cerca de 600€/mês) - se prendia com o facto de Toronto, uma cidade extremamente popular para quem quer viver no Canadá, ter o terceiro mercado de arrendamento mais caro do país. O que faz com que, quem não consegue acompanhar o aumento do custo de vida, se veja forçado a adotar medidas mais radicais.

Em Portugal, ainda não chegámos a este ponto (acho), mas já temos alguns anúncios que não nos deixam de surpreender. Como foi o caso, citado pela revista, de um exemplo que se viral no TikTok em agosto e que se traduzia num vídeo onde duas turistas estrangeiras tentavam entrar num Airbnb que tinham arrendado no Bairro Alto, mas a porta para a cave era tão pequena que tiveram de rastejar de joelhos para poderem entrar.

Eu tenho a noção que, nestas coisas, temos de ter sempre em consideração a lei da oferta e da procura. De igual forma, como temos tido a oportunidade de ver (e ler), temos igualmente de considerar a capacidade inventiva dos Portugueses em rentabilizar algo e navegarem na crista da onda. E, se no início até achávamos graça que Portugal estivesse na moda, que os turistas e os estrangeiros viessem para cá morar, hoje em dia, há uma perceção, errada, que tudo isto se deve à popularidade de Portugal, dos turistas e como o País é encarado por quem nos visita e escolhe aqui viver.

Tenho consciência que é fácil culpar o estrangeiro pelos nossos males, no que na Habitação diz respeito, mas temos também de ter presente o ADN luso que não perde uma boa oportunidade para mostrar a sua capacidade inventiva, de desenrascanso e de chico-espertismo.

Desconheço se estamos ou não a anos-luz das realidades que se ocorrem em países como a Austrália e o Canadá. Não sei, igualmente, se o ficcional enredo da série norueguesa tem pernas para andar num futuro próximo, em Portugal ou em qualquer outro país europeu. Mas o que tenho a certeza é que precisamos, urgentemente, de encontrar algumas soluções eficazes para o problema da Habitação em Portugal. Com a serenidade possível e, acima de tudo, com muito bom senso, que, acho, é algo que tem escasseado nos vários stakeholders. Possamos nós, que lidamos mais de perto com o Imobiliário, sermos o factor de estabilidade em algo que há muito está do domínio do irreal. Ou, se preferirem, da ficção.

Francisco Mota Ferreira

francisco.mota.ferreira@gmail.com

Coluna semanal à segunda-feira. Autor dos livros “O Mundo Imobiliário” (2021), “Sobreviver no Imobiliário” (2022) e “Crónicas do Universo Imobiliário” (2023) (Editora Caleidoscópio).