O monstro precisa de amigos
Em 1999, a banda portuguesa Ornatos Violeta lançou o seu segundo álbum que dá nome a esta crónica. O mostro precisa de amigos é, aos dias de hoje, considerado um dos melhores álbuns portugueses de rock. Perguntar-se-ão o que é que eu quis dizer com isto e porque raio é que fui buscar esta evocação da memória dos anos 90?
Lembrei-me deste título quando, em amena conversa com malta do sector por estes dias, houve uma pessoa que veio dizer que não concordava com as comissões de 5% e que, como geria o seu próprio negócio, fazia a gestão do mesmo da forma como entendia - o que incluía, naturalmente, negociar comissões mais baixas e fazer ou não partilhas.
Talvez por esta pessoa em causa ser dona de uma pequena marca pode pensar desta forma. Talvez os restantes tenham caído em cima dela porque representam marcas franchisadas e, como tal, estão formatados ao diktat dos 5% sem sequer o discutir. Nas próximas linhas tentarei, ainda que de forma resumida, explicar os argumentos de uma e de outra parte. Deixo para quem me lê a dura tarefa de classificar quem é monstro que precisa de amigos.
Eu, que vim só aqui para ver a bola, consigo encontrar argumentos válidos em qualquer um dos lados da barricada. Senão vejamos: não deixa de ser curioso que estamos sempre a encher a boca a dizer que o imobiliário é um negócio de pessoas para pessoas, mas, quando chega a hora H, tentamos impor regras próprias que, muitas vezes, são em nosso próprio benefício e não são, necessariamente, em benefício da comunidade.
Por outro lado, no final do dia, se a marca é nossa, cabe-nos a nós definir as regras que mais nos convêm e as que fazem mais sentido na prossecução do negócio. Também é verdade que esta liberdade e independência dos mais pequenos em relação aos maiores é algo que faz alguma comichão no sector.
A comichão é, naturalmente, maior, quando para além da mexida na percentagem supostamente instituída, os mais pequenos decidem igualmente se querem ou não partilhar os seus activos com a concorrência. É verdade que os defensores mais acérrimos da partilha alegam que quem a faz está a agir em nome do superior interesse do cliente. Mas, como tão bem sabemos, nem sempre assim é, com o interesse do cliente às vezes a ser a última coisa que o sector, o consultor, a agência ou a marca se preocupam.
Há quem defenda, por exemplo, que a preocupação da partilha, por mais nobre que seja o seu princípio, encerra em si uma falácia que se prende com a suposta convicção de que no imobiliário temos de ser todos amigos. Não temos, até porque as marcas são tendencialmente concorrentes, incluindo entre si e os seus consultores. Temos, isso sim, de criar relações de confiança que, com sorte, podem evoluir para uma relação de amizade. E, por cautela, ter sempre presente o ditado, “amigos, amigos, negócios à parte”.
E, da mesma forma que os maiores não devem impor regras aos mais pequenos, o inverso também não deve acontecer, nomeadamente quando se tenta promover um fenómeno de dumping no pagamento das comissões. Porque, como não são franchisados, conseguem comissões mais baixas e condições supostamente mais “competitivas” que uma marca franchisada não consegue. É também por isso que, quem tem as marcas mais pequenas alega ainda que, porque não são franchising, têm o direito de fazer as suas próprias regras de gestão, acusando as que o são de quererem que a minoria viva de acordo com as regras que dão mais jeito à maioria.
Para terminar, eu diria que o problema decorre, a meu ver, de dois factos distintos. O primeiro advém do facto de, em Portugal, as marcas que dominam o mercado são franchisadas. E, como tal, estão limitadas nas suas opções, independências ou liberdades e têm de aceitar as regras da marca mãe – que, por exemplo, podem passar pela imposição dos 5% de comissão ou da obrigatoriedade (ou não) de existir partilha de negócio. E, como são dominantes, tentam influenciar as regras do sector de acordo com o que são forçadas a seguir.
O outro facto a assinalar para esta suposta anomalia dá-se pelo facto de, apesar da profusão de organismos que lidam com o imobiliário, não há uma Bíblia com regras claras, com direitos e deveres, onde cada consultor e cada marca saiba o que pode fazer e até onde pode ir nas suas liberdades criativas em fazer negócios. Claro está que a ausência de regras claras interessa a muita gente. Mas isso, como sabemos, é toda uma outra história.
Francisco Mota Ferreira
Trabalha com Fundos de Private Equity e Investidores e escreve semanalmente no Diário Imobiliário sobre o sector. Os seus artigos deram origem aos livros “O Mundo Imobiliário” (2021) e “Sobreviver no Imobiliário” (2022) (Editora Caleidoscópio)