Logo Diário Imobiliário
CONSTRUÍMOS
NOTÍCIA
JPS Group 2024Porta da Frente
Arquitectura
Casa de Sá, Aveiro @João Morgado

Casa de Sá, Aveiro @João Morgado

Casa de Sá: Quando a arquitectura contemporânea escuta a memória de Aveiro

30 de dezembro de 2025

Aveiro preserva, na sua malha urbana, alguns dos mais significativos testemunhos da Arte Nova em Portugal. Este legado, hoje amplamente reconhecido como parte essencial da identidade da cidade, nem sempre foi consensual. No início do século XX, a Arte Nova foi alvo de críticas severas: acusada de excessiva, dispendiosa e pouco funcional, acabou rapidamente eclipsada pela Arte Déco e pelo racionalismo do Movimento Moderno. Muitos dos seus edifícios foram descaracterizados ou demolidos, num processo de apagamento físico e simbólico que só começaria a ser revertido décadas mais tarde.


Casa de Sá, Aveiro @João Morgado

A revalorização da Arte Nova, já na segunda metade do século XX, inscreve-se numa lógica recorrente da história urbana: as cidades constroem-se por sobreposição de camadas, num processo contínuo de revisitação e reinvenção. É dessa estratificação que nasce a riqueza da experiência urbana — e Aveiro é, nesse sentido, um verdadeiro palimpsesto arquitectónico.


Casa de Sá, Aveiro @João Morgado

Na mesma rua onde concebeu a sua própria casa, o arquitecto Francisco Augusto Silva Rocha, figura central na afirmação da Arte Nova na cidade, projectou, no início do século XX, um edifício discreto mas de grande dignidade formal. A composição do alçado revela uma atenção cuidada ao detalhe: no piso térreo, uma janela redonda em cantaria marca o eixo central; no primeiro piso, vãos ornamentados com motivos florais conduzem o olhar até a um friso cerâmico, intercalado com elementos pétreos; nas águas-furtadas, uma janela sob pequeno telhado é encimada por um rosto feminino, reforçando a dimensão narrativa do conjunto.


Casa de Sá, Aveiro @João Morgado

É em relação directa com este edifício que surge a Casa de Sá pela mão do arquitecto Tiago do Vale, uma nova construção implantada num lote vazio, que assume como princípio fundamental o diálogo com o contexto histórico. Volumétrica, material e compositivamente, a casa retoma o léxico da obra de Silva Rocha: dois pisos, três vãos ritmados, janela central nas águas-furtadas, alinhamentos altimétricos e uma composição de fachada claramente ordenada.

Num gesto contido, o novo edifício recua ligeiramente em relação ao alinhamento da rua, afirmando uma presença respeitosa, quase como quem escuta antes de intervir. O resultado é um diálogo atento, onde o novo não compete com o existente, mas o prolonga.


Casa de Sá, Aveiro @João Morgado

As referências são assumidas sem disfarce. Um nicho técnico sob um óculo generoso evoca a janela redonda da casa original; o embasamento em pedra calcária e o uso de azulejo cerâmico no piso térreo estabelecem paralelos diretos com a materialidade histórica. Nos pisos superiores, a madeira e a serralharia reinterpretam soluções tradicionais à luz de uma linguagem contemporânea, mais depurada.

Apesar desta forte ancoragem no passado, a Casa de Sá afirma-se claramente como uma obra do seu tempo. Para além da referência direta à Arte Nova, evoca também outras memórias construídas de Aveiro: as fachadas de madeira dos antigos armazéns de sal e, de forma mais subtil, o ritmo e o cromatismo dos Palheiros da Ria.


Casa de Sá, Aveiro @João Morgado

Funcionalmente, o edifício organiza-se em dois fogos distintos. No rés do chão, um apartamento compacto de um quarto abre-se para um pátio traseiro através de uma ampla superfície envidraçada. A habitação principal desenvolve-se no primeiro piso e nas águas-furtadas, beneficiando de uma claraboia central que atravessa ambos os níveis e resolve a profundidade do lote. Este elemento alinha-se com o vestíbulo, marcando o momento de entrada e iluminando as circulações com uma luz simultaneamente direta e difusa.

Os espaços sociais orientam-se a sul, voltados para a rua, filtrando a luz natural através de um ripado de madeira. A suíte recua para a fachada posterior, mais resguardada e silenciosa. No piso superior, dois quartos ocupam as duas frentes do edifício, separados por zonas técnicas, circulações e um espaço de estudo.


Casa de Sá, Aveiro @João Morgado

A opção por materiais locais e soluções duráveis reforça o enraizamento da obra no território. Granito, calcário e mármores são extraídos e trabalhados em Portugal; a madeira de pinho, as ferragens, tintas, cerâmicas e equipamentos sanitários são de produção nacional, privilegiando uma lógica de proximidade e sustentabilidade.

Num território marcado por lotes vazios e por edifícios habitacionais indiferenciados, construídos na viragem para o século XXI, a Casa de Sá destaca-se como um gesto afirmativo. Mais do que um simples edifício, assume-se como um ensaio sobre continuidade, pertença e escuta: da rua, da cidade, da história construída e da vida quotidiana.


Casa de Sá, Aveiro @João Morgado


Entre memória e contemporaneidade, a Casa de Sá demonstra que a arquitectura pode ser simultaneamente respeitosa e autónoma — e que o futuro urbano se constrói, muitas vezes, a partir de uma leitura atenta do passado.

FICHA TÉCNICA

Nome do projecto:  Casa de Sá

Arquitectura: Atelier Tiago do Vale, Arquitectos (http://tiagodovale.com)

Equipa de projecto: Tiago do Vale, Clementina Silva, Paula Campos, com Adriana Gomes, Alara Çağla, Marija Matozan, Nil Kokulu, Sara Ventura da Cruz, Jan Momot

Ano de projecto: 2019-2021

Programa: Residencial

Localização: Aveiro, Portugal

Cliente: Patrícia Freitas, João Santos

Construção: Engicivil - Cardoso & Manata Lda.

Especialidades: SIPC L.da

Ano de construção: 2022-2025

Áreal de implantação: 110 m2 / 1180 ft2

Área de construção: 280 m2 / 3010 ft2

Fotografia: João Morgado (http://joaomorgado.com)