
Francisco Mota Ferreira
Vai haver choro e ranger de dentes
Começo este texto com uma referência bíblica que evoca o estado de sofrimento e desespero extremo. No caso do Livro Sagrado, São Lucas e São Mateus referem-se à punição dos ímpios (os que não eram puros ou crentes) ou à dor de quem era excluído do Reino de Deus.
A imagem é, deliberadamente, forte porque, no que na Habitação diz respeito, muitas famílias estão a viver o Inferno na Terra. Porque não conseguem arranjar casa. Ou porque não a conseguem pagar. Ou porque os apoios às rendas, promovidos pelo Estado e pelas Autarquias, parecem não ser suficientemente eficazes, porque estes mecanismos acabam por não acelerar à mesma velocidade do aumento contínuo das rendas.
Nos primeiros três meses de 2025, os pedidos de apoio para pagar habitação praticamente duplicaram em relação ao período análogo, o que, quer dizer apenas uma coisa: o frágil equilíbrio que existia entre o salário auferido e o custo de vida foi definitivamente rompido. E quantas vezes a decisão de procurar os apoios surge in extremis e por vergonha, quando as famílias percebem que o dinheiro que entra já não cobre tudo e precisam de fazer escolhas, muitas vezes difíceis: a renda ou a conta da luz; a renda ou o cabaz alimentar. Em muitos casos, a opção acaba sempre por recair no pagamento da primeira. E porque perdem temer perder a casa por falta de pagamento há muitas famílias onde a miséria está escondida.
Os avisos não são de hoje e os alertas estão há muito identificados. (Num registo paralelo, e, por diferentes motivos, começam a multiplicar-se histórias de ocupações ilegais de habitações que estão vazias, levando ao desespero os seus legítimos donos perante a inércia das autoridades e a morosidade dos tribunais – em Espanha, onde este fenómeno já tem alguns anos, há empresas privadas que acabam por fazer, à força, aquilo que as autoridades deviam fazer a tempo e horas).
Nos últimos tempos o valor dos imóveis tem subido a um ritmo alucinante: comprar ou arrendar em cidades como Lisboa ou no Porto tornou-se quase exclusivo de carteiras bem generosas ou de quem beneficia de rendimentos extraordinários. Cada vez mais, este é um fenómeno que começa a alargar-se às zonas limítrofes, em círculos cada vez maiores.
Por outro lado, à oferta restrita — reflexo de licenças urbanísticas lentas, edifícios por reabilitar e terrenos deixados ao abandono— juntou-se uma procura avassaladora, alimentada pelos vistos gold, pela compra de imóveis por cidadãos estrangeiros, pelo turismo de curta duração e pela aposta de grandes fundos imobiliários. O resultado? Preços que avançam mais depressa do que os salários e um parque habitacional que se torna cada vez mais inacessível.
Perante esta realidade, há que perceber que isto já não se resolve com meros remendos. É urgente aumentar, com rapidez e escala, o número de fogos a preços controlados. Este governo deu um primeiro passo com a Lei dos Solos e ao estimular o build-to-rent, mas são medidas que só vão começar a produzir efeito a médio prazo. E, neste momento, são precisos resultados quase imediatos.
Acredito, por isso que, para já, há que mobilizar o que existe: lançar linhas de crédito com condições vantajosas para senhorios que queiram manter rendas abaixo de determinados patamares, agilizar a reabilitação de prédios devolutos e converter escritórios vazios em habitação temporária.
De igual forma, é imprescindível criar um sistema de apoio mais ágil e flexível a quem pretende arrendar um imóvel e precisa de ajuda para o fazer. Os subsídios de renda devem ser reajustados periodicamente ao ritmo da inflação e pagos de forma imediata e sem demoras burocráticas, que deixam famílias penduradas nas contas. Os critérios de elegibilidade precisam de ter em conta não só o rendimento bruto, mas também o peso que a habitação representa no orçamento doméstico. E deve existir um fundo de emergência capaz de socorrer situações críticas, antes que o incumprimento conduza ao despejo.
Mas nenhuma política de habitação será sustentável sem uma participação ativa das pessoas e dos privados. Tenho aqui escrito sobre isso diversas vezes. É preciso apoiar as cooperativas de habitação que, suportadas por incentivos fiscais e técnicos, podem oferecer soluções de longo prazo, com gestão transparente e compromisso social. Mas também promover parcerias público-privadas que, além de acelerar projetos, ajudam a distribuir riscos e a aproveitar a experiência do setor privado na construção e manutenção de edifícios.
O momento que vivemos exige um esforço coordenado, onde os prazos legais se encurtem, os apoios se acelerem e a inovação social se torne regra. Estamos a menos de um mês das próximas eleições legislativas que vão ditar um novo Parlamento e um novo Governo. Seria interessante que o tema da Habitação tivesse alguma prioridade e fosse entendido como um desígnio e urgência nacionais. Sob pena de, muito em breve, termos (mais) choro e ranger de dentes.
Francisco Mota Ferreira
francisco.mota.ferreira@gmail.com
Coluna semanal à segunda-feira. Autor dos livros “O Mundo Imobiliário” (2021), “Sobreviver no Imobiliário” (2022), “Crónicas do Universo Imobiliário” (2023) e “Conversas sobre o Imobiliário” (2024) | Editora Caleidoscópio.
*Texto escrito com novo Acordo Ortográfico