O voo de Ícaro
Ícaro, da mitologia grega, ficou preso com o seu pai, Dédalo, no labirinto do Minotauro. Ambos conseguiram fugir da prisão onde se encontravam graças a umas asas de cera construídas pelo engenhoso Dédalo. Ao coloca-las no seu filho, alertou-o para não se aproximar demasiado do sol, para que o calor não derretesse a cera, e não chegasse muito perto do mar, para que a água e o sal não danificassem as penas. Porém, inebriado pela sensação de liberdade, Ícaro ignorou os avisos do seu pai. O sol derreteu a cera das asas e Ícaro cai no mar, acabando por morrer.
Lembrei-me desta história ao ver a forma como o sector tem andado muito agitado por causa da decisão da Remax em mudar as regras de partilha de comissões de venda com as outras marcas. Vamos aos factos:
- A Remax vai passar a partilhar com todas as marcas, incluindo as até então proscritas KW e Zome. Essas partilhas vão passar a ser na proporção 70/30 – 70% para quem tem o activo e 30% para quem traga o comprador. Entre colegas Remax, a partilha é igualitária (50/50). Abrangidas por esta medida ficam também as imobiliárias que angariam a 3%, numa medida mais “democrática”, porque estavam maioritariamente afastadas dos negócios com a marca do balão.
- De igual forma, a Remax aceita que, tendo o comprador e a outra marca o activo, a proporção deverá ser de 30/70 e não os 50/50 que eram praticados até então.
A Remax acha que vai sair reforçada no mercado e valorizada enquanto tal e, se dúvidas houvessem, bastava ver aquele inacreditável vídeo “Uma aventura no bosque”, onde a marca fala de anões, cogumelos e druidas - pessoalmente, acho o vídeo medonho a vários níveis (algo que poderei, com gosto, detalhar a quem esteja mais interessado nas vertentes de comunicação) mas, em termos de marketing, este cumpre a função porque está, de facto, toda a gente a falar disso.
Goste-se ou não da marca, do vídeo ou da estratégia que vai ser seguida a partir de 1 de Março, o facto é que os argumentos para esta decisão estão lá:
1º - A Remax privilegia, claramente, a angariação em detrimento do cliente comprador. É a única explicação para atribuir 70% da comissão a quem tem o activo, mesmo que o possa fazer negócios com outra rede da concorrência. Vendo o vídeo percebe-se que o fazem, supostamente, por duas razões:
- Porque a Remax só recorre às outras marcas em 5% das suas vendas;
- Porque as outras marcas procuram a Remax em 40%, 60% ou até mesmo 80% dos seus negócios.
2º - Ao fazerem a divisão 70/30 para fora, mas manterem 50/50 entre portas, estão a defender a marca e os seus consultores (algo que qualquer marca do mercado, do imobiliário ou não, deverá fazê-lo a todo o momento). E, claro, a acreditar que os consultores Remax vão preferir “partilhar na nossa família a 2.5% os mais de 60 mil cogumelos que temos nos nossos armazéns” (in “Uma aventura no bosque”).
O vídeo é esclarecedor (e assustador também) porque é assumido, de forma clara e transparente, o que levou a Remax a tomar esta decisão. Seja ou não 100% verdade, o facto é que a marca acha que neste momento ainda tem “a força suficiente para mudar o sistema e defender a nossa família dos ataques que estamos a ter por parte de todas as outras famílias de anões” e também porque considera que “não é justo para a nossa família que as outras famílias vivam dos nossos cogumelos e ainda nos roubem os nossos anões”.
A Remax é, neste momento, e segundo todos os elementos referenciais existentes, a maior marca em Portugal. Em facturação e número de consultores. Como o mercado não está regulado em termos de percentagem de comissões e partilhas de negócios, qualquer marca pode agir da forma que entenda e que considere ir ao encontro dos seus interesses ou na defesa intransigente da sua marca.
Analisando o top 10 das marcas que operam em Portugal, notamos que a Remax terá cerca de metade dos consultores, enquanto as outras 9 reúnem tantos consultores como a Remax. O que pode acontecer a partir de 1 de Março parece-me óbvio:
1. A Remax vai fechar-se sobre si própria, tentando desenvolver os seus negócios entre portas (e fazendo a necessária análise desta decisão eventualmente no final do ano);
2. As outras marcas irão fazer todas negócios entre si, realizando as partilhas 50/50 que defendem. E, só em última análise, irão procurar a Remax.
3. O cliente, que não apanha metade destas guerras de alecrim e manjerona, vai recorrer às marcas e consultores que conhece, sem perceber se pode (ou não) ser melhor representado nos seus interesses com a Remax ou com outra marca qualquer.
Pelos feedbacks que vou tendo e vendo, as outras marcas estão indignadas com esta decisão da Remax, que viola princípios não escritos do mercado e as regras de sã convivência entre as marcas. E há também algumas indignações de consultores e responsáveis de agências Remax, que já anunciaram que não irão cumprir com estas determinações da casa mãe, com consequências que, acredito, terão de ser avaliadas de parte a parte.
Nesta nublosa que nos encontramos, é salutar que estas decisões façam o mercado mexer, algo que também mostra o dinamismo que o sector tem. Não deixa de ser naturalmente irónico que a Remax seja o suposto cimento de uma união que não existe nem nunca existiu no imobiliário.
Desconheço se esta decisão vai correr bem ou mal à Remax. Nesta fase ninguém sabe. Mas, enquanto não houver regulação efectiva, real e concreta, enquanto os vários players que lidam com o imobiliário estiverem cada um a lutar para o seu lado e na defesa dos seus únicos interesses, decisões como as da Remax continuarão a existir, sem qualquer consequência prática que não sejam as indignações de bancada.
Acredito que iremos assistir a uma mudança de paradigma nas relações entre as agências. Ou, no limite, entre a Remax e a sua concorrência. A concluir, espero que mais do que histórias de cogumelos, anões e druidas e críticas da concorrência, nenhum dos players envolvidos ache que pode ser como Ícaro. Mesmo ficcional, a mitologia mostrou que não correu bem.
Francisco Mota Ferreira
Trabalha com Fundos de Private Equity e Investidores e escreve semanalmente no Diário Imobiliário sobre o sector. Os seus artigos deram origem ao livro “O Mundo Imobiliário” (Editora Caleidoscópio).