O Ferrari e o Fiat Punto
A história ainda é do tempo dos capitães de Abril e reza assim: em 1975, Otelo Saraiva de Carvalho, à época comandante do todo poderoso COPCON, foi de viagem oficial à Suécia. No encontro que manteve com o então primeiro-ministro deste país, o social-democrata Olof Palme, Otelo terá dito com indisfarçável orgulho: "Em Portugal, já acabámos com os ricos". Em resposta, Palme terá respondido: "Nós, na Suécia, preferimos acabar com os pobres."
Lembrei-me desta história porque, no que ao imobiliário diz respeito, tenho sentido um aumento da antipatia entre pares e o alargamento de um fosso entre todos nós, com guerras cruzadas entre agências, consultores e brokers (os que representam uma marca e os que se representam a si próprios).
Não vale a pena estarmos com rodeios: neste sector temos, infelizmente, à nossa volta gente muito mesquinha que, não só não gosta do Fiat Punto que conduz, como deseja ardentemente que o broker ou o consultor que dirige o Ferrari o espatife na primeira curva. Em vez de, naturalmente, apreciar andar de Punto e não a pé e perceber que, se quer ter um Ferrari, tem de lutar por ele porque os carros de luxo não caem do céu.
As redes sociais são, aliás, terreno fértil que dão lastro a todo este fel e confesso-vos que ainda hoje consigo ficar surpreendido. Não pelas atitudes deploráveis (que ficam com quem as toma), mas porque, em muitos casos, estas pessoas não têm sequer a inteligência de perceber que, ao verbalizarem as suas supostas queixas, estão apenas a revelar aquilo que são.
E não é preciso vasculhar muito: as agências que odeiam a liberdade que os brokers com licença AMI própria têm, alegando que estes praticam dumping ao aceitarem comissões abaixo dos 5% (esquecendo-se, providencialmente em muitos casos, que estas agências firmam acordos com construtores ou com a banca onde a norma são 3% ou até menos). Ou quando os consultores se enredam em esquemas para escapar ao pagamento de comissões a parceiros ou à própria agência. Ou quando, em vez de olharem para o seu próprio negócio e tentarem melhorá-lo, se preocupam a cuscar a actividade de profissionais do sector (ou de agências rivais) para ver se estes estão a infringir alguma norma ou alguma lei.
É, infelizmente, um sector cheio de falsos moralistas, onde os primeiros a apontar o dedo são os que têm mais rabos de palha. São os brokers que fazem os negócios fora da agência onde estão ou os consultores que enganam os colegas ou a agência que representam. Ou nos casos mais graves, que, infelizmente, também os há, das agências que exploram os seus profissionais e não respeitam os contratos com eles firmados, descuram o que têm dentro de portas e vivem a preocupar-se com o que está do lado de fora, como se, com isso, arranjassem forma de honrar os compromissos, que não cumprem, com os seus funcionários, os consultores ou até mesmo o Estado.
No dia em que o sector, individual ou colectivamente, começar a exigir de si próprio o que, de forma sonsa, infantil e persecutória, acha que tem de impor aos outros, talvez comecemos a chegar a algum lado. Até lá, continuaremos a ver muitos condutores de Fiat Punto que nunca terão o talento ou a inteligência para alcançar o Ferrari.
Francisco Mota Ferreira
Consultor imobiliário