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Opinião

Francisco Mota Ferreira

Canal caveira

13 de agosto de 2024

Uma das coisas que sempre me fez confusão quando fazia mercado residencial prendia-se com a facilidade com que se encontravam os mesmos ativos nas mãos de pessoas diferentes que, em muitos casos, até nem se conheciam entre si.

Não estou aqui a falar dos contratos sem exclusividade, aqueles em que o proprietário, sabe-se lá porque razão, decide colocar o mesmo ativo nas mãos de vários profissionais do imobiliário, na expetativa que todos tenham o mesmo nível de compromisso para consigo e na esperança que, porque estão mil consultores a trabalhar de borla para si, a coisa será vendida de forma mais célere.

O que estou aqui a falar é dos comboios de consultores, que surgem quase de forma inesperada, e que se traduzem naquele número infindável de profissionais que aparecem, tal monstro sem controle, porque o primeiro consultor, que tem o ativo, resolve partilhar, com algumas pessoas da sua confiança, um documento para tentar encontrar um cliente. E quando se dá por ela, o ativo está na rua, nas mãos sabe-se lá de quantas pessoas. Porque todos confiam em todos quando é para encontrar um cliente, certo?

Já aqui escrevi sobre os comboios de consultores e manifestei o meu ceticismo em relação à real eficácia de se fazer negócio através destes. Um exemplo pode ser encontrado, por exemplo, nos hotéis. Todos sabemos que, pelo preço certo, qualquer hotel em Portugal estará, tendencialmente, à venda. Mas a dificuldade está, às vezes, a chegar a quem é o verdadeiro dono ou quem é que tem o poder de decisão.

Estes filmes acabam quase, de forma ingénua, na perceção errada de que pode ser mais fácil ser um elemento na cadeia de negócio, na expetativa e esperança que ganhemos 2.5%, 1.25% ou o que seja – olvidando-nos muitas vezes que 2.5% de nada é igual a 10% de zero.

E quantas vezes, apenas por incúria, preguiça ou voluntarismo nos esquecemos do básico? Se queremos mesmo fazer aquele negócio é preciso por pernas ao caminho, tentar perceber quem é o dono para tentar angariar o ativo para nós. Algo que é, concordamos todos, muito melhor do que fazer parte de uma infindável cadeia de consultores onde, a uma dada altura, já nem sabemos quem tem o quê e, mais importante do que isso, quem é que nos paga.

Não me interpretem mal, eu até defendo e acho que é importante desenvolvermos a partilha de negócio. E, neste sector, é relativamente fácil conhecermo-nos uns aos outros: porque estamos na mesma rede, porque já fomos apresentados por terceiros, ou porque já fizemos negócios juntos ou estamos em vias de o fazer. Isso é uma coisa.

Outra é termos a consciência que, por razões que nem sempre controlamos, o quão difícil é fazermos um negócio em que dois profissionais estão envolvidos, quanto mais quando este número se prolonga para 3, 4, 5 ou mais…

Eu até percebo o deslumbre e o fascínio de ter acesso, mesmo que de forma muito indireta, a ativos que normalmente não chegam ao comum dos mortais. E compreendo que a possibilidade de termos uma comissão, ainda que pequena, num negócio de muitos milhões, é uma tentação fantástica que nos permite pensar que podemos estar perante o negócio da nossa vida.

Agora, sejamos concretos. Todos nós já apanhamos aquele “profissional” (as aspas aqui são propositadas) que até tem um dossier com os supostos ativos a que tem acesso. E qualquer que seja o consultor que estamos a falar, há coisas que não mudam: todos os ativos são bestiais e envolvem valores na ordem dos vários milhões. E nenhum é dele.

Nestes casos, muitos de nós até caímos no erro de achar que podemos ajudar quem está à nossa frente a fechar este negócio que, não sendo dele, é-nos garantido ser de um parceiro que este afiança conhecer e que lhe garantiu uma comissão de X que ele, diligentemente, até divide connosco.

Levado ao extremo, somos nós que prolongamos a agonia do comboio, porque deslumbrados e cegos pelo ativo, consultamos a nossa rede à procura de quem nos possa ajudar. E estamos a fazer o mesmo que a pessoa que nos contatou e todas as outras antes dele, contribuindo para que, de repente, estejam incontáveis profissionais a perder tempo com uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma.

Faço aqui o meu mea culpa e assumo perante vós: Been there, done that.

Felizmente percebi rápido que uma comissão alta de nada é sempre pior do que uma comissão baixa de alguma coisa. E muito depressa deixei de procurar ou participar em unicórnios. Ser canal num negócio entre duas pessoas, que representam o comprador e o vendedor (e ser pago por isso) é uma coisa. Ser canal num negócio sem rosto, com variáveis que não controlamos, é apenas meio caminho andado para perdermos tempo. E sermos apenas um canal caveira que, entretanto, morreu de fome à espera da percentagem dos milhões.

Francisco Mota Ferreira

francisco.mota.ferreira@gmail.com

Coluna semanal à segunda-feira. Autor dos livros “O Mundo Imobiliário” (2021), “Sobreviver no Imobiliário” (2022) e “Crónicas do Universo Imobiliário” (2023) (Editora Caleidoscópio)

*Texto escrito com novo Acordo Ortográfico