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Opinião

 

O princípio do fim do Alojamento Local como o conhecemos

29 de março de 2022

Através de acórdão de uniformização de jurisprudência datado de 22 de março de 2022, o Supremo Tribunal de Justiça veio decidir que, no regime da propriedade horizontal, a indicação, no respetivo título constitutivo de que certa fração autónoma se destina a habitação, deve ser interpretada no sentido de nela não ser permitida a realização de atividades de alojamento local.

Trata-se de uma decisão com um alcance muito significativo uma vez que a generalidade dos estabelecimentos de alojamento local existentes se encontra a funcionar em unidades afetas a habitação, sobretudo nas grandes cidades do nosso País.

O sentido deste acórdão foi o de um colocar um ponto final relativamente à discussão sobre a adequação da utilização de um determinado imóvel àquela que é a sua configuração no título constitutivo da propriedade horizontal. Ficou assim definitivamente esclarecido que a atividade de alojamento local é uma atividade que configura a prestação de serviços de alojamento temporários e que, por isso, não pode ser desenvolvida em imóveis com finalidade habitacional.

Esta decisão não tem um efeito vinculativo externo, sendo apenas orientadora para os tribunais. Donde, o seu verdadeiro alcance irá muito depender da sua aplicação pelas entidades fiscalizadoras como as câmaras municipais ou a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE), bem como do maior ou menor ativismo ou aceitação da parte dos condóminos dos prédios em regime de propriedade horizontal.

No ano de 2019, de acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística, estes estabelecimentos registaram 4,6 milhões de hóspedes e 10,2 milhões de dormidas, valores que abrandaram nos anos de pandemia de 2020 e 2021, mas já em grande recuperação em 2022.

É, pois, indiscutível a relevância económica deste tipo de oferta turística, que representa cerca de metade das unidades de alojamento turístico registadas em Portugal e cerca de 20% do número de camas disponível. O valor dos proveitos totais desta atividade atingiu 381,6 milhões de euros no ano de 2019.

Para além de ter permitido alavancar o crescimento turístico, com tudo o que daí resulta, esta atividade teve ainda um impacto positivo na reabilitação urbana, uma vez que a grande maioria dos alojamentos foi objeto de obras de reabilitação ou renovação, com diferente extensão e intensidade. Não esquecer ainda que muitas destas unidades se encontravam devolutas e, portanto, sem qualquer ocupação habitacional.

A configuração desta atividade nos termos atualmente existentes remonta já a 2008 quando o legislador introduziu esta figura no nosso ordenamento procurando distinguir os estabelecimentos de alojamento local como todos aqueles não reunindo os requisitos para serem considerados empreendimentos turísticos, aí se incluindo as moradias, os apartamentos e os estabelecimentos de hospedagem.

Durante a crise económica que seguiu a 2008, o alojamento local foi um produto turístico inovador que permitiu a muitas famílias portuguesas dispor de rendimentos alternativos para dar resposta à austeridade imposta com a redução dos salários e o aumento dos impostos. Foi ainda um veículo para atração de investimento estrangeiro procurando a rentabilização de muitos edifícios degradados ou em ruínas, o que significa que nem sempre as intervenções tiveram em lugar em unidades residenciais avulsas como muitas vezes é apontado.

Há muito que os tribunais portugueses vinham discutido a matéria sobre a qual o Supremo Tribunal de Justiça veio agora fixar jurisprudência uniforme, estando em confronto diferentes interesses e situações merecedoras de igual proteção jurídica, desde logo ao nível da proteção da propriedade privada.

O Supremo Tribunal de Justiça veio agora considerar que deve prevalecer a proteção da propriedade horizontal e os direitos do condóminos, não sendo suficientes as medidas restritivas introduzidas pela Assembleia da República em 2018 no sentido de permitir que os condóminos, em assembleia, pudessem se opor ao exercício da atividade de alojamento local, com fundamento na prática reiterada e comprovada de atos que perturbassem a normal utilização do prédio ou de atos que causassem incómodo e afetassem o descanso dos demais residentes.

As decisões visando uniformizar jurisprudência têm normalmente por objetivo pôr termo a uma divergência ou contradição entre acórdãos proferidos pelos tribunais superiores, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão de direito. Esta intervenção visa assegurar a segurança e a certeza na aplicação do Direito, de forma que não sejam adotadas decisões judiciais distintas.

O resultado deste acórdão pode também ele ser gerador de insegurança e incerteza em relação aos estabelecimentos de alojamento local já constituídos. É legítimo e razoável que os proprietários destes estabelecimentos tenham de cessar a sua atividade depois dos investimentos realizados?  Tal situação não é igualmente suscetível de ofender os valores da confiança, da certeza e da segurança?

Amanhã toma posse o novo Governo e o futuro próximo do alojamento local e a sua adequada regulação será seguramente um dos dossiers que o Ministério da Economia terá de gerir de imediato. Só assim se evitará instabilidade indesejada num setor tão relevante da nossa economia.

A regulação deve procurar o equilíbrio entre os efeitos positivos e negativos desta atividade, devendo o alojamento local ser objeto de regulamentação adicional que o permita estabelecer como um regime com características específicas, que o torne compatível tanto com o regime da propriedade horizontal como com o regime jurídico da atividade urbanística. Há ainda que fazer um balanço do impacto da criação de zonas de contenção e do seu real contributo para o desenvolvimento de oferta habitacional para os cidadãos residentes. Ou ainda que pensar na limitação da duração do registo dos estabelecimentos de alojamento local, sobretudo nas zonas de contenção.

André Miranda

Sócio da Pinto Ribeiro Advogados

*Texto escrito com novo Acordo Ortográfico