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A queda de um anjo

18 de abril de 2022

Escrito por Camilo Castelo Branco em 1866, “A Queda de um Anjo” conta-nos a história de Calisto Elói, um fidalgo transmontano, que é eleito deputado e vai viver para Lisboa, onde se deixa corromper pelo luxo e pelo prazer que imperam na capital.

Lembrei-me desta obra quando, recentemente, me falaram da ascensão e queda dos top producers e a obsessão com a competitividade, que faz com que muitos deles não aguentem a pressão e acabem por desistir, nem sempre das melhores formas.

Quem conhece a realidade das grandes empresas sabe bem o que está em causa: ambientes altamente competitivos, onde os ganhos podem ser potencialmente enormes, levam a que colegas lutem entre si na busca desesperada de serem o número um ou estarem no top dos rankings. E, de repente, parece que o mundo anda sempre à volta disso e não há nada melhor ou mais importante do que ganhar o próximo negócio, atingir aquele valor de comissão, ser o melhor da marca.

No imobiliário, por maioria de razão, as coisas são assim ou ainda bem piores. Numa profissão onde o salário são as comissões de negócios efectuados, acaba, infelizmente, por ser quase “natural” que o ambiente competitivo que se cria, nas próprias agências ou no mercado, leve a que a determinação em serem top producers seja a coisa mais importante do mundo. Nem que para isso, tenha-se de ultrapassar tudo e todos ou esquecer algumas regras pelo caminho.

Eu até percebo e dou de barato que o imobiliário seja propício a que este tipo de fenómenos ocorra e seja, infelizmente, mais frequente do que se imagina. O que queria aqui realçar/reforçar é o lado negro da adrenalina que se cria com a busca incessante pela comissão melhor ou pelo próximo negócio.

Pelo que me contam, há casos de top producers que não conseguem lidar com a pressão de deixar de estar nos rankings das marcas que representam. Tal como as miúdas gostam de mostrar os seus decotes ou os miúdos os seus bíceps, as redes sociais são a montra mais fácil, onde se partilha os sucessos atingidos: mais um imóvel vendido em apenas uma semana; uma reserva após a primeira visita, um diploma de sucesso ou aquela foto com um pechisbeque de plástico ou de metal que diz que somos fantásticos porque demos a ganhar imenso dinheiro (a nós, mas principalmente à marca que representamos).  E enquanto é assim (e todas as partes estão contentes) é bestial.

O problema surge quando deixamos que as comissões sejam o alfa e o ômega do que fazemos, tomando conta de nós e dos nossos negócios. Não aceitamos partilhar porque queremos a comissão toda para nós, não acedemos a representar aquele cliente porque a comissão é, de acordo com os nossos patamares, muito baixa ou enreda-mo-nos num loop de angariação/negócio/venda para que possamos estar sempre no top da marca ou da agência.

Pelos relatos que recebi, este começa a ser um problema real para alguns consultores. Os que têm mais sorte, não aguentam a pressão do insucesso e abandonam a profissão, tentando recuperar a sanidade perdida fora do imobiliário. Os outros, os que demoram a reconhecer que têm um problema, desgraçam-se a si e a quem está à sua volta. Este é, ao que parece, um segredo mal guardado desta profissão que, até hoje, não tinha visto escrito em lado nenhum. É tempo de o por cá fora e dar o alerta para que, quem precisa, possa ainda ser ajudado a tempo.

(Dois anos depois de ter iniciado a minha colaboração com o Diário Imobiliário, este é o centésimo artigo que escrevo para o jornal. Quando comecei a escrever, em Abril de 2020, estávamos em pleno confinamento por causa do Covid e nunca pensei que esta minha colaboração acabasse por ser tão duradora e profícua, com milhares de carateres escritos. É, também por isso, o momento de reforçar o meu agradecimento à Fernanda Pedro, que me acolhe nesta casa, mas também ao Miguel Ribeiro, da Predimed, que sempre me incentivou para a publicação de “O Mundo Imobiliário”.  Naturalmente, não podia esquecer-me do meu editor Jorge Ferreira, da Caleidoscópio, que foi um suporte inabalável para que o livro fosse uma realidade. E, por fim, à Madalena Spínola pela criatividade gráfica e de design criados. Este será talvez o melhor momento para partilhar convosco que já está em marcha um segundo volume sobre este sector, que todos adoramos. Mais novidades em breve).

Francisco Mota Ferreira

Trabalha com Fundos de Private Equity e Investidores e escreve semanalmente no Diário Imobiliário sobre o sector. Os seus artigos deram origem ao livro “O Mundo Imobiliário” (Editora Caleidoscópio).