A atracção pelo abismo
Os brasileiros contam, em jeito de anedota, que o Marechal Castelo Branco, primeiro Presidente da República após o golpe militar de 1964, terá dito num discurso qualquer coisa deste género: "O Brasil estava à beira do abismo, agora deu um passo em frente."
Confesso-vos que nunca percebi se este discurso realmente existiu ou se é um mito urbano criado pelos brasileiros para menorizar a classe política no geral (e os políticos actuais adeptos da ditadura brasileira em particular), mas tenho-me lembrado muito desta gaffe clássica por causa das medidas que estão a ser criadas em Portugal para atenuar os efeitos da crise.
Não me querendo dispersar sobre as que vão incidir sobre as famílias decorrentes do próximo Orçamento de Estado (OE), quero, no entanto, chamar aqui a atenção para uma que, não decorrendo directamente das medidas que constam do OE, tem implicações presentes e (provavelmente) complicações futuras para as famílias e o País: falo das moratórias para o pagamento de empréstimos.
Neste momento, e ao contrário do que decorreu após a crise imobiliária de 2008, há uma aparente dinâmica no sector, com vários especialistas a garantir que o imobiliário vai ser a área de negócio que mais se vai aguentar, que vai manter a economia a rolar e, inclusive, que vai suportar a retoma. Não contrariando em absoluto toda e qualquer tese que possa surgir, confesso-vos que não sei o que pensar sobre tudo isto (ou mesmo qual o verdadeiro impacto que a moratória pode vir a ter para o futuro das famílias). Não tenho nenhuma bola de cristal, não me dedico à futurologia e, portanto, tudo o que possa dizer sobre isto arrisca-se a ser considerado um achismo da minha parte.
Há, porém, alguns dados que sustentam o que escrevo e que não auguram nada de bom. Até Setembro do próximo ano, milhares de famílias vão viver numa aparente normalidade porque a prestação do pagamento do imóvel está suspensa. Muitos estão a usar o suposto excedente não para amortizar, mas para se manter à tona da água porque, genuinamente, existiram quebras de rendimento. Mas outros há que mostram que não aprenderam nada com as fábulas de La Fontaine e, na dúvida, glorificam a cigarra e castigam a formiga, usando o suposto excedente para a compra de bens supérfluos.
E se mais dúvidas houvesse que estamos a viver uma situação anómala, bastava atentar para os dados mais recentes do INE sobre o número de transacções imobiliárias e preços: depois de uma descida ligeira registada após o confinamento, o preço dos imóveis está a aumentar, mas o número de transações a diminuir.
O Hugo Silva, que partilha comigo a opinião neste jornal, já aqui o escreveu e argumentou de uma forma que só posso concordar – “Moratórias: Estarão elas a “segurar” um possível crash imobiliário?” – realçando o impacto que as moratórias estão a ter para as famílias e o verdadeiro problema que estas serão em Setembro de 2021, quando os Portugueses voltarem a assumir os compromissos entretanto suspensos.
Não sei se voltaremos aos anos negros de 2008, com descida do preço dos imóveis, diminuição de CPCVs e vendas, incumprimentos das famílias e perda de imóveis a favor da Banca, mas acho que estamos a assobiar para o lado nesta matéria e a viver numa bolha artificial que, mais cedo ou mais tarde, vai rebentar. A bazuca europeia e a pipa de massa que estão a chegar seriam instrumentos fundamentais para minimizar este risco. Infelizmente, temo que, pelos exemplos passados, servirão apenas para (re)confirmar a nossa atracção pelo abismo. Este será o tema do meu próximo artigo.
Francisco Mota Ferreira
Consultor Parcial Finance