O registo do cliente
Uma das (muitas) coisas que sempre me fez confusão quando trabalhei o mercado residencial prende-se com a percepção errada que alguma malta do imobiliário tem de que os clientes são eternos. Nos meus tempos, em que achei que o meu caminho nestas lides passava por estar ligado a uma marca e a uma agência, nunca registei um único cliente junto de potenciais parceiros e, confesso-vos, sempre achei ridícula aquela coisa deplorável de enviar os primeiros ou os últimos quatro dígitos do telemóvel ou o email cifrado para que a outra parte pudesse confirmar se, porventura, em algum momento das suas vidas, o meu cliente foi dele.
Confesso-vos que desconheço se esta suposta particularidade apenas existe no imobiliário, mas tudo me diz que sim. Se assim não fosse, nas nossas vidas particulares, estaríamos para sempre vinculados a lidar apenas com as mesmas marcas de carros, de operador de comunicações, de seguros ou, vamos exagerar, de supermercado. Ter a presunção que um cliente é nosso apenas porque recorreu a nós numa altura específica da nossa vida é, convenhamos, uma suprema soberba. Escrito desta forma, parece que o livre-arbítrio não existe e que uma vez nosso, o cliente será para sempre nosso. Sou só eu que vejo o quão ridículo isto é?
Eu sei que o mundo imobiliário está cheio de espertalhões. E é importante, por isso, criar relações de confiança interpares que, numa primeira fase passam pelas burocracias dos papeis, dos acordos e dos contratos. Porém, à medida que a confiança se instala, mesmo com as burocracias inerentes – que são sempre desejáveis para salvaguardar as respectivas posições – o registo dos clientes torna-se um não-assunto porque já ninguém quer saber se nalgum momento passado das nossas vidas o Sr. Antunes trabalhou connosco ao invés das trezentas outras pessoas que, entretanto, passaram pela vida do Sr. Antunes (and, for the sake of argument, pelas nossas e dos nossos parceiros).
E já nem falo da questão óbvia da violação gritante do RGPD que é a partilha de dados dos nossos clientes com terceiros. Nas nossas casas somos todos polícias da moda, sempre muito diligentes a dizer que não queremos publicidade não endereçada a encher as nossas caixas de correio, chateamo-nos quando o nosso número de telefone aparece nas bases de dados, compradas a peso de ouro, para sermos massacrados por vendedores melgas que nos querem impingir algo que nem sequer precisamos. Mas aqui d´El Rei, deixa-me lá pedir os dados do cliente ao meu colega que, com sorte, até pode ter sido trabalhado por mim ou pela minha marca no passado. E, assim, posso dar uma de fdp, lixar a comissão ao meu colega, ir por trás e tentar roubar o cliente. É mais ou menos este o raciocínio que a malta das raspadinhas com os números de telemóvel faz, não é?
E, para terminar, até dou de barato a circunstância do Sr. Antunes no passado ter trabalhado connosco e agora vir parar a nós por interposta pessoa. Pode ser uma extraordinária coincidência ele dar connosco através de um colega. E isso, meus caros, decorre apenas de três circunstâncias: o Sr. Antunes nem nunca mais se lembrou de nós, ele recorda-se de nós porque fizemos um péssimo trabalho com ele ou (o mais provável), o Sr. Antunes apenas quer ver o seu problema resolvido e recorreu a quem, naquele momento em concreto, lhe pareceu a pessoa ideal para isso mesmo.
Fidelidades eternas? Nem no casamento. Menos, ok?
Francisco Mota Ferreira
Trabalha com Fundos de Private Equity e Investidores e escreve semanalmente no Diário Imobiliário sobre o sector. Os seus artigos deram origem aos livros “O Mundo Imobiliário” (2021) e “Sobreviver no Imobiliário” (2022) (Editora Caleidoscópio)