A mediação imobiliária por detrás do pano: o recrutamento
Quem me acompanha por aqui, sabe que tenho, ao longo das últimas semanas refletido sobre algumas dos temas mais comuns quando se fala do imobiliário. Termino esta semana com a multiplicação das licenças AMI, a política de recrutamento e a capacidade que as marcas têm em manter consultores a trabalhar para si.
Hoje em dia continua a ser extraordinariamente fácil obter uma licença AMI, resumindo-se os requisitos de acesso ao pagamento anual de uma taxa de algumas centenas de euros e um seguro de responsabilidade civil com um custo inferior ao da licença. Longe vão, por isso, os tempos em que ter uma licença AMI implicava fazer um exame para aceder à profissão e talvez também por isso mesmo agências eram suficientes e os consultores profissionalizados, mantendo-se na função durante largos anos, com a formação e acompanhamento necessários.
Desde que se assistiu ao boomdo imobiliário, o mercado explodiu e sobrecarregou-se. Sem quaisquer barreiras à entrada – à excepção do pagamento dos fees estipulados – o acesso a uma licença AMI é hoje em dia algo verdadeiramente fácil e a consequência está aí. Segundo dados do IMPIC, há actualmente 9.472 licenças activas, das quais 3.048 são no distrito de Lisboa. Só uma marca diz ter 10 mil consultores - número que supera o número de licenças atribuídas às agências em todo o país - distribuídos pelas suas agências, com algumas, em Lisboa, a ultrapassar os 100 consultores.
O que andam milhares de consultores a fazer? De que vivem? Por que razão vemos estes agentes a saltar de marca em marca em poucos anos? É necessário terem uma enorme resiliência para abraçar uma marca, sentir frustração quando não mais se identificam com ela, terem coragem de a deixar e começar do zero, para voltarem a sentir a frustração de trabalhar num sistema que não é sustentável para alguém que procura colaboração e só encontra competitividade. Que estratégia de recrutamento de sucesso se consegue atingir quando este é por norma agressivo e baseado no insucesso e rotatividade dos seus consultores?
A resposta está no seguinte: de cada vez que recrutam um novo consultor, este trará pelo menos uma angariação da sua rede de contactos mais próxima - familiares ou amigos - que o querem ajudar e sentem que terão ao seu lado alguém de confiança. E isso, como sabemos, por vezes basta para ir um pouco mais além do grau de exigência mínimo de entrada no mercado imobiliário: a capacidade de respirar.
A incapacidade de mudar é, também por isso, algo que convém ao mercado, às agências e, no limite, aos próprios consultores, com muitos a achar que, para ter sucesso, só precisam de ter sorte uma vez. Como em tudo na vida, quando acreditamos que algo está bem porque sempre funcionou assim, então não há motivação para melhorar.
Pelos anos que me dedico a estudar e a escrever sobre o imobiliário em Portugal continuo a acreditar que é possível existir mediação imobiliária que realmente esteja ao serviço dos seus clientes, que seja uma autoridade no que faz (e não apenas mais uma), que proporcione valor ao mercado e ofereça confiança em vez medo, e transparência em vez de especulação, comissões alinhadas com a real proposta de valor e não com a compensação de ineficiências e da necessidade de recrutamento e formação de massas.
Com a profusão de players que existem, sei que é uma quimera almejar que o sector possa funcionar com os princípios e incentivos certos. Sei que é difícil porque há quem lucre muito com esta nebulosa e o lobby das grandes marcas tem poder. (E, convenhamos, há um genuíno receio de que uma pequena marca – ou várias – possam fazer a diferença e começar a criar mossa no Império).
Aqui chegados, é tempo de deixar o elefante na sala para futuras reflexões da vossa parte: a questão não é se de se saber ou perceber se as agências imobiliárias que mantêm estes modelos vão sobreviver, a questão é até quando o conseguirão fazer. Nesse dia, quando a maré mudar, talvez os clientes possam enfim perceber que, afinal, o tamanho nunca contou para grande coisa.
Francisco Mota Ferreira
Trabalha com Fundos de Private Equity e Investidores e escreve semanalmente no Diário Imobiliário sobre o sector. Os seus artigos deram origem aos livros “O Mundo Imobiliário” (2021) e “Sobreviver no Imobiliário” (2022) (Editora Caleidoscópio)