A banha da cobra
O ritual da banha da cobra é algo que nos acompanha desde sempre e que vem do imaginário popular. Tenhamos crescido na aldeia ou na cidade, aquela imagem do homem a gritar aos sete ventos as maravilhas de um suposto poderoso elixir é uma marca de um tempo passado que, apesar de todas as feiras e mercados que ainda hoje existem pelo país, já rareia e faz com que os nossos filhos nem sequer entendam o conceito da frase “estás a vender-me banha da cobra” quando eles, por exemplo, nos tentam convencer para os deixarmos sair à noite.
No meu caso, há duas circunstâncias de vida em que a imagem do vendedor de banha da cobra me surge à memória. A primeira, ainda nos saudosos tempos da Feira Popular, em Lisboa quando víamos aquele senhor empoleirado entre tachos e panelas, com um megafone a fazer pacotes de utensílios de cozinha, ao mesmo tempo que outros vendiam as senhas que dariam acesso aos prémios desejados. Compensava sempre, achava eu, porque os tachos e panelas na altura eram caros e ali a coisa estava feita para, mal ou bem, todos ganharmos qualquer coisa. Quanto mais não fosse a diversão e a adrenalina de saber o que é que o conjunto que a senha verde ou azul garantia.
Passei vários anos, confesso-vos, sem pensar muito no senhor das panelas da Feira Popular de Lisboa, ou na banha da cobra como arte de fazer negócio. Até que, dei por mim, recentemente, a pensar que, neste nosso mundo imobiliário ainda há, infelizmente, algumas personagens que certamente acham que podem enganar os mais incautos, vendendo banha da cobra (ou panelas a granel), achando que estão a proporcionar um negócio excelente à outra parte. E, pior do que isso, a acreditar que estão a fazer um bom trabalho nesse trabalho de engana-tolos.
A internet é aliás, profícua no espelhar desse suposto sucesso dos profissionais de banha da cobra imobiliário. Não sendo obviamente uma verdade universal – até porque em cada regra, como sabemos, há excepções – mas reconheço que me despertam logo os sinos (e não são os das escrituras realizadas) quando alguém se expõe em demasia nas redes sociais, partilhando sucessos reais e/ou imaginários, na esperança vã que colegas ou particulares possam cair no seu conto do vigário, na banha da cobra, no comprar gato por lebre.
Este é aquele profissional que, de uma suposta angariação consegue fazer múltiplos postsa reclamar sucessos atingidos – visitas, CPCV, SPA, etc. -, o que nos inunda o WhatsApp com oportunidades irrecusáveis off market (e quantas delas não são um nada simpático comboio de vários consultores a anunciar o mesmo activo?), partilha os prémios pechisbeque que a agência lhe deu e está sempre a prometer “avaliações gratuitas para o seu imóvel”, entre tantas e tantas técnicas de marketing de sucesso que, acho, nem em 1970 davam resultado.
Nestas coisas recordo-me sempre de uma regra básica tantas vezes esquecida no imobiliário à conta das nossas vaidades: o segredo é a alma do negócio e, por isso quem não sabe não estraga. Talvez seja por isso mesmo, que os melhores consultores e os que mais facturam são, justamente, aqueles, que a maior parte nem sequer sabe quem são.
Francisco Mota Ferreira
Trabalha com Fundos de Private Equity e Investidores e escreve semanalmente no Diário Imobiliário sobre o sector. Os seus artigos deram origem aos livros “O Mundo Imobiliário” (2021) e “Sobreviver no Imobiliário” (2022) (Editora Caleidoscópio)