A Transformação de Solos Rústicos em Urbanos: Uma Nova Era para o Mercado Imobiliário?
O recente Decreto-Lei n.º 117/2024, de 30 de dezembro, que veio possibilitar, a título excecional, a reclassificação de solos rústicos em urbanos traz implicações significativas para o mercado imobiliário e o planeamento urbano em Portugal. Trata-se de uma resposta legislativa necessária para enfrentar os desafios da crise habitacional, enquanto tenta equilibrar as exigências de desenvolvimento sustentável com a crescente pressão por novas habitações.
O primeiro ponto a destacar é a simplificação do processo de reclassificação de solos rústicos. Anteriormente, as decisões dependiam de pareceres de várias entidades públicas, como as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) e a Agência Portuguesa do Ambiente (APA). Ao abrigo deste regime excecional, a reclassificação dos solos dependerá de proposta da Câmara Municipal e deverá ser, posteriormente, discutida e aprovada em assembleia municipal. Essa mudança poderá, à partida, simplificar o processo e permitir às autarquias adaptar as decisões às necessidades específicas das suas regiões.
No que respeita aos requisitos de aplicação deste regime excecional, é de notar que nem todos os solos rústicos são elegíveis para reclassificação. A legislação exclui terrenos com alta aptidão agrícola, áreas costeiras protegidas e zonas de risco, como áreas sujeitas a cheias ou deslizamentos. Esta limitação é fundamental para proteger o meio ambiente e evitar impactos negativos em ecossistemas sensíveis.
Adicionalmente, o diploma impõe um prazo máximo de cinco anos para que as infraestruturas sejam concluídas nos terrenos reclassificados. Existe, contudo, a possibilidade de prorrogação única de, pelo menos, metade do prazo inicial, desde que as referidas operações urbanísticas já tenham sido iniciadas. Este limite temporal garante que os terrenos convertidos sejam efetivamente utilizados, uma vez que a não realização das operações urbanísticas previstas nos prazos indicados determina, automaticamente, a reversão da classificação do solo como urbano.
Outro aspeto inovador é a introdução de limites nos preços das habitações construídas em terrenos reclassificados. Em regiões metropolitanas como Lisboa e Porto, os preços poderão atingir até 225% da mediana nacional por metro quadrado. Já em municípios menos populosos, o limite será de 125% da mediana nacional. Esses limites aplicam-se a 70% das construções nos terrenos reclassificados, assegurando que grande parte da oferta seja destinada à habitação a preços acessíveis.
Do ponto de vista do investimento, esta legislação oferece oportunidades para promotores que estejam dispostos a alinhar os seus projetos com a sustentabilidade e as novas exigências legais. É certo que a conversão de terrenos rústicos em urbanos pode ser uma solução para aumentar a oferta habitacional em áreas com grande pressão demográfica, mas o equilíbrio entre rentabilidade e responsabilidade social poderá ser o desafio para os promotores.
Embora as alterações legislativas sejam positivas, há riscos que não podem ser ignorados. O primeiro é a capacidade administrativa e técnica das câmaras municipais para implementar as mudanças de forma eficaz. Sem os recursos adequados, há o perigo de decisões ineficazes ou até mesmo arbitrárias.
Outro desafio poderá estar na fiscalização. Com a simplificação dos processos, é crucial que sejam estabelecidos mecanismos de controlo rigorosos para assegurar que as reclassificações seguem critérios claros e beneficiam a comunidade.
Por fim, existe o risco de que os limites de preços possam desincentivar alguns promotores de investir em áreas de maior necessidade. Será essencial que o governo acompanhe de perto o impacto dessa política e faça ajustes, se necessário.
A verdade é que o diploma poderá ainda sofrer alterações significativas, uma vez que existem propostas de alteração a ser votadas na especialidade, nomeadamente a redução do limite temporal para conclusão das infraestruturas ou a substituição do conceito "valor moderado".
Não obstante, as alterações legislativas introduzidas representam já uma tentativa ambiciosa de transformar o mercado imobiliário português. Ao simplificar processos, descentralizar decisões e introduzir medidas de controlo de preços, o governo procura criar um ambiente mais equilibrado e acessível a todos. Estas mudanças podem ser um catalisador para um mercado imobiliário mais dinâmico e inclusivo, contribuindo para o crescimento sustentável e para a resolução de um dos maiores desafios sociais da atualidade: a habitação.
Jéssica Ramos
Advogada na MATLAW
*Texto escrito com novo Acordo Ortográfico