Política de habitação não tem distinguido “necessidades” de “desejos” – Helena Roseta
A política pública para responder à procura de habitação em Portugal não tem sabido distinguir entre “as necessidades” e “os desejos”, constata a arquitecta Helena Roseta, que lança hoje um “livro de memórias”.
“Há uma procura de acordo com as necessidades e é a essa que o poder público tem que responder e há uma procura de acordo com os desejos, as vontades, essa é completamente aberta e não temos obrigação pública de lhe dar resposta”, diferencia a ex-deputada em várias legislaturas, falando em “caixa negra da procura”.
A política pública tem de dar resposta “às necessidades e não às aspirações mais ou menos esotéricas que se podem ter”, nota.
“As pessoas podem querer ter palácios, as pessoas podem querer ter ‘penthouses’”, mas “não é o poder público que tem que viabilizar isso”, salienta, especificando que essas “vontades” não podem implicar gastar recursos de que toda a gente precisa para sobreviver.
Para a autora da lei de bases da habitação, aprovada em 2019, “há casas a mais, mas não onde é preciso, nem a preço acessível”.
Helena Roseta descarta a ideia de que não há oferta: “Temos imenso terreno, imensos edifícios, privados, livres, disponíveis, que não são mobilizados, porque a oferta só está interessada no que dá mais lucro e o que dá mais lucro é o segmento de luxo, porque há compradores, porque se incentivou essa procura externa".
No contexto deste “perverso” sistema, defende uma “relação forte” entre a política fiscal e a política habitacional.
“Não podemos dar facilidades fiscais a medidas que contrariam o direito à habitação de muita gente”, ressalva.
“As pessoas têm direito a fazer alojamento local, mas ter um negócio de alojamento local não é um direito essencial, não é um direito humano, é um direito possível, é uma liberdade económica”, distingue, criticando também o “excesso de apoios públicos para atrair investimento estrangeiro, que depois se verifica que vai fazer subir os preços”.
"A favor da economia de mercado”, assinala que o dever da política pública é responder às necessidades básicas “e isso na habitação está a falhar”.
Helena Roseta recorre a mais um exemplo: “Acho muito bem que no IRS Jovem se facilite o acesso dos jovens à habitação, mas por que é que se vai facilitar a estratos solventes, que têm capacidade de encontrar casa no mercado? Teria que se facilitar é aqueles que não conseguem lá chegar".
“Toda a gente tem legitimidade de querer comprar uma casa, mas nós não temos que apoiar a compra de casa de toda a gente”, distingue, defendendo “processos mais transparentes”, que garantam “que os dinheiros públicos vão para onde devem ir”.
No livro “Habitação&Liberdade” (ed. Caleidoscópio), que será apresentado na quarta-feira, às 18:00, na Assembleia da República, Helena Roseta sublinha que a luta pela habitação e a luta pela democracia “têm mesmo que se fazer juntas”, porque “a habitação é um direito essencial, está consagrado na Constituição, mas não está garantida a muita gente em Portugal”.
Aliás, acrescenta, o país está “a atravessar uma crise que priva uma parte importante da população de um direito essencial”, que obriga à revisão de “muitas das medidas que têm sido utilizadas”, porque não estão a garantir o direito à habitação.
“Estamos a andar para trás”, constata, recordando que, “durante anos a fio”, os governos mobilizaram “pinguinhas” para a habitação.
No livro, escreve que existe um “gigantesco fosso entre os deveres constitucionais do Estado em matéria de habitação e a gota de água no oceano em que eles se traduziram nos orçamentos de praticamente todos os governos desde então”.
Nem juntando todo o dinheiro público, espalhado por vários programas, incluindo o PRR (Plano de Recuperação e Resiliência, fundos europeus), num total de 3.000 milhões de euros, será suficiente para fazer mais do que “garantir umas dezenas de milhares de fogos”, estima, lembrando que “há muito mais gente que não consegue aceder à habitação ou que está em risco de perder a habitação que tem”.
Ex-coordenadora do programa Bairros Saudáveis, que começou durante a pandemia de covid-19 e a que o atual Governo decidiu pôr fim, Roseta diz que o direito à habitação precisa de deixar de ser uma “meta moral” para ser efetivamente concretizado.
No livro, a deputada recorda como o artigo 65.º da Constituição, que consagra o direito à habitação, “foi praticamente unânime” em 1976, apesar de na altura se viver “um momento de enorme tensão política” (o PREC, Processo Revolucionário Em Curso).
“Foi um privilégio da minha vida ter podido participar na Constituição de 1976, porque, de facto, ela continua viva e ainda hoje as pessoas se referem aos direitos da Constituição e precisam dela para se defender”, congratula-se.
LUSA/DI