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Um século de oportunidades perdidas – Parte II

29 de novembro de 2021

Há uma história engraçada sobre a Constituição da República Portuguesa (CRP) que, confesso, nunca percebi se era ou não verídica. Conta-se que, nos anos quentes após revolução em Portugal, quando os legisladores se sentaram para abolir a então Constituição de 1933 e preparar o caminho para a de 1976 – que, apesar das alterações a que foi sendo sujeita é a que está neste momento em vigor – as ideias fervilhavam ao mesmo tempo que a vontade de que as utopias e os amanhãs que cantam fossem realidade, quase como se bastasse escrevê-los para que, de repente, tudo ficasse resolvido.

Ainda de acordo com este mesmo mito urbano, alguns legisladores mais afoitos (ou mais sonhadores) fizeram questão de abrilhantar a Lei Fundamental ao ponto do irreal, sabendo que estes desejos não podam ser concretizáveis, mas manifestando a ténue esperança que Portugal evoluísse para esse estádio superior de evolução económica, onde as necessidades básicas de todos seriam supridas pelo (omni)presente Estado.

Confesso-vos que não sei se esses propósitos de boa intenção e de virtude Estatal estavam contemplados nas políticas de habitação e no artigo 66 que partilhei convosco na semana passada. Mas, se formos a (re)ler bem o que está lá estipulado constatamos que há uma forte possibilidade de os legisladores terem pensado em Neverland e não em Portugal. O que é tão ou mais triste, porque, em teoria, a fórmula de sucesso está lá, ao definir-se quais são as responsabilidades exclusivas do Estado, as que são partilhadas com as Autarquias e as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira e por fim, o direito de participação dos interessados.

De 1976 para cá, muito foi feito em termos de política de habitação, mas pouco acabou por sair do papel. E o que foi sendo feito é objecto de um manancial de críticas, algumas das quais infelizmente com razão – processos pouco transparentes na entrega de habitação dita social, criação de entidades públicas, que apenas serviram para gastar erário público e dar empregos a boys, destruição de ordenamento, áreas protegidas e orla costeira em nome do “urbanismo” e do progresso, violações do PDM, etc., etc., etc…

Dito isto, partilho convosco que defendo uma concepção liberal qb do Estado, embora reconheça a importância deste na condução de políticas que assegurem o bem comum. Simplificando, acredito que o Estado deve intervir para regular um sector, mas depois deve dar lugar aos privados para que estes possam entender-se entre si. Pelo meio, o Estado deve estar vigilante e atento para que, em políticas centrais como as da Habitação, não exista uma lei da selva, mas, ao mesmo tempo, que a intervenção estatal não nos leve a viver num regime socialista de economia planificada.

Acredito que o equilíbrio é, necessariamente, difícil e será igualmente difícil agradar a todas as partes. Mas sei que o Estado é o único player de peso que pode assumir as condições menos favoráveis para que este bem comum seja garantido e os privados e restantes intervenientes envolvidos possam assumir determinadas posições sem risco de verem a sua estratégia dinamitada.

Vamos a exemplos concretos. Havendo carência de habitação para o mercado de arrendamento, cabe ao Estado assegurar que existe oferta no mercado, que esta se encontra em níveis razoáveis (sem especulação desmedida) e que esta pode ser uma oportunidade de negócio para os promotores e uma resposta para quem procura arredar em vez de comprar.

Colocando esta “roda” a funcionar, se os promotores souberem que têm no Estado um parceiro confiável que os ajuda, por exemplo, nas inesperadas subidas do preço de materiais, se o Estado colabora na articulação com as Autarquias locais na definição de um preço justo por m2 para habitações destinadas ao mercado de arrendamento; por outro lado, se os proprietários de imóveis começarem a constatar que há políticas concretas de incentivo ao mercado de arrendamento e se, em paralelo, os clientes perceberem que podem arrendar em vez de se amarrarem a contratos leoninos de compra de uma habitação (e que até podem recorrer a apoios do Estado e das Autarquias para o arrendamento social), acredito que estariam lançadas as bases para uma revolução no sector.  Respondendo ao repto que lancei há umas semanas atrás, admito que a questão nunca se colocaria em termos de mais ou menos Estado, mas sim melhor Estado, ao serviço de todos.

Podemos, claro está, passar mais um século a definir qual será a Estratégia Nacional para a Habitação para as próximas décadas, podemos publicar memorandos de entendimento e discutir Programas de Apoio. Enquanto o Estado não quiser assumir de forma clara que lhe cabe ser o elemento charneira na definição de políticas eficazes na Habitação, sabendo gerir os equilíbrios necessários e dar espaço aos privados e ao sector para singrar e florescer com confiança, não sairemos nunca da cabeça maravilhosa daqueles legisladores que, um dia, se juntaram para escrever Leis para um Portugal ideal que nunca irá surgir.

Francisco Mota Ferreira

Consultor imobiliário