"A reabilitação é uma consequência positiva da crise económica"
Defensor da verdadeira reabilitação urbana, onde preservar as memórias dos edifícios e das cidades é o principal objectivo de qualquer intervenção, o arquitecto Paulo Moreira tem mostrado que reabilitar com qualidade e criatividade a baixos custos é possível.
Natural do Porto, os seus projectos têm sido apreciados e elogiados por todos e depois da Invicta, Lisboa foi a cidade escolhida para expandir o seu atelier.
Convicto que a reabilitação é o caminho certo para o seu trabalho, Paulo Moreira em entrevista ao Diário Imobiliário, revela que ela vai estar no centro da actividade da arquitectura e do mercado imobiliário nas próximas décadas.
Como tem vivido as alterações no mercado imobiliário e que tiveram consequências directas na profissão?
Assistimos ao abrandamento das novas construções e florescimento do mercado da reabilitação. Não tenho experiência profissional suficientemente longa para falar sobre o momento anterior, mas parece haver alguma dificuldade de adaptação a esta nova condição por parte de vários agentes da indústria da construção, incluindo arquitectos. Falo do verdadeiro sentido de “reabilitar”, por oposição a “fazer de novo”. No ensino, o projecto de reabilitação não tem expressão curricular – apesar de ser esse o futuro da prática da arquitectura em Portugal. É importante ter noção que a reabilitação vai estar no centro da actividade da arquitectura e do mercado imobiliário nas próximas décadas. Essa já é a realidade, e há que saber acompanhá-la.
A reabilitação tem sido a solução para os arquitectos?
A reabilitação é sem dúvida uma consequência positiva da “crise económica”. Os centros históricos precisavam desesperadamente de atenção e investimento. É estimulante participar no processo de recuperação das nossas cidades, a par de outros colegas com o mesmo sentido de “missão”. É refrescante ver como a reabilitação pode ser entendida de formas tão diversas mas igualmente comprometidas com a valorização do património – vejam-se as obras do André Eduardo Tavares, dos DEPA, do Fala Atelier e do RAR Studio, entre outros. Por outro lado, vemos casos de arquitectos, promotores e construtores que parecem fazer reabilitação “contrariados”, apenas por falta de outro tipo de oportunidades. Prefiro ver a reabilitação como um “plano a”, um campo legítimo de trabalho. Mesmo se houvesse excesso de trabalho em novas construções, continuaria a ser necessária e urgente a reabilitação de edifícios.
A sua perspectiva sobre a reabilitação tem sido muito elogiada, sobretudo porque mostra que se pode reabilitar com qualidade e criatividade a custos baixos. Como analisa isso?
Agrada-me essa ideia de entrelaçar qualidade e criatividade com custos controlados. O que tento fazer é captar o espírito de cada edifício e encontrar possibilidades de melhoria sem mudanças drásticas. Procuro soluções que pareçam “naturais”, que de alguma forma “pertençam” à obra em questão. Por vezes, isso passa simplesmente por eliminar as alterações que determinado edifício foi sofrendo ao longo das épocas, deixando emergir a sua essência construtiva e espacial. A intenção de preservar o carácter original de um edifício pode ser conciliada com intervenções pontuais mais “atrevidas”, tais como expor ou pintar as texturas dos materiais. São respostas simples que conferem uma nova linguagem aos edifícios. Interessa-me esta ideia de síntese, de subtrair elementos em vez de acrescentar – este exercício é impossível na nova construção. Estas estratégias de reabilitação não são pensamentos isolados. Por mais “contextualistas” que possam ser os nossos projectos, focados em situações específicas, inserem-se numa visão plural e global sobre os fenómenos da reabilitação e das cidades. Por exemplo, interessa-me tanto o movimento de reabilitação low profile que emerge em Espanha, como o trabalho dos britânicos Assemble, com grande cuidado com a materialidade, conciliando intervenções de baixo custo com detalhes preciosos. Recentemente tenho acompanhado o movimento que surge no Japão, por exemplo com o Jo Nagasaka / Schemata, que convoca a apropriação gradual dos edifícios, por oposição à busca da perfeição imediata comum nos projectos de raíz.
Depois do Porto, agora a abertura de um atelier aqui em Lisboa. A que se deve esta expansão?
Foi uma decisão prática, com uma dose emocional. Tive a felicidade de receber duas encomendas de projectos quase simultâneas em Lisboa – um apartamento em Santos e a fábrica de cerveja artesanal Musa, em Marvila. Durante as fases de projecto, ia e vinha facilmente às respectivas reuniões. A ideia de ter uma base de trabalho em Lisboa teve a ver com a necessidade de acompanhar estas duas obras. Tinha uns amigos com um atelier fantástico e espaçoso no Intendente, o bureau-a, e ali encontrei o ambiente ideal para esta aventura. Simultaneamente, tinha uma vontade de iniciar uma nova fase, já que o início destas obras coincidiu com a entrega da tese de Doutoramento. Aqui é que reside a tal dose emocional. Olhando para trás, este é o tipo de decisões que permitem dar um passo em frente. Em 2011, no auge da crise económica, regressei de Londres sem algo tangível para fazer aqui. A vontade de trabalhar nos meus próprios projectos falou mais alto, e contra as expectativas resolvi regressar. Agora é tempo para a fase de Lisboa, mas há que mencionar que esta foi uma aproximação gradual. Em 2013 participei na Trienal de Arquitectura de Lisboa, com um projecto muito absorvente, que me trouxe à cidade continuamente durante pelo menos meio ano. Em 2014 foi-me atribuído o Prémio IHRU, bem como uma menção honrosa na mesma edição. Ver as minhas primeiras obras reconhecidas à escala nacional foi um excelente incentivo. Várias pessoas do júri disseram-me que “em Lisboa precisam conhecer esta forma de trabalhar”, e essas palavras de incentivo ficaram no ouvido. No ano seguinte, fui convidado para integrar o júri, andámos por todo o país a visitar o que melhor se faz em reabilitação. Foi uma experiência muito rica, e fiquei ainda mais motivado para alargar o âmbito do meu trabalho. Tenho interesse em testar as estratégias de reabilitação que comecei por desenvolver na Rua dos Caldeireiros noutros contextos, programas e escalas.
Quais os projectos que tem trabalho e que tem em mãos neste momento?
Para além dos projectos em Lisboa – que espero que dêem origem a novas encomendas e colaborações – neste momento temos vários trabalhos no Norte do país. Terminámos a nossa maior obra até ao momento, a reconversão de um edifício geminado na Senhora da Hora, em Matosinhos. Este ano tivemos as primeiras encomendas públicas: o projecto de regeneração urbana do Monte Xisto, também em Matosinhos, iniciado em 2014 como parte da representação portuguesa na Bienal de Veneza. Após longa espera, a Câmara Municipal acabou por encomendar-me o projecto, por achar que era uma ideia pertinente para cuidar de um bairro com necessidades de intervenção no espaço público. Temos também o projecto de reabilitação de três prédios para habitação social, precisamente na Rua dos Caldeireiros, no Porto. Este projecto faz parte de um programa muito pertinente da Câmara Municipal para recuperar e repovoar o centro da cidade com famílias com baixos rendimentos. Estamos também a desenvolver alguns projectos privados – uma moradia em Gaia conciliando reabilitação e ampliação; dois prédios muito bonitos em Miragaia, um apartamento em frente ao mar, um pequeno café na Sé, e uma casa rural inserida numa paisagem maravilhosa, no Minho. E há mais projectos a caminho…
Como vê o futuro da arquitectura?
Sempre com um sorriso. Não podemos deixar-nos afectar pelas vozes que propagam visões pessimistas sobre trabalhar em Portugal. Procuro escapar desses discursos de desalento. Basta olharmos à nossa volta para vermos que há muito a fazer, portanto o futuro só pode ser risonho e promissor. Acredito que a nossa sociedade e a profissão da arquitectura estão a mudar e, como tal, temos que mudar também os discursos. A época em que o lançamento das carreiras dos arquitectos residia nas novas construções, de casas por exemplo, já passou. A reabilitação tomou esse papel.