CONSTRUÍMOS
NOTÍCIA
Entrevistas

 

A arquitectura que eu estudei acabou!

1 de novembro de 2016

Dispensa qualquer apresentação, o prestigiado arquitecto português Eduardo Souto de Moura, nascido no Porto, já ganhou quase tudo o que era para ganhar em matéria de prémios, até o chamado Óscar da arquitectura, o famoso Pritzker. Contudo, nem o seu brilhante percurso, nem todas as distinções retiraram-lhe simpatia e acima de tudo, humildade. É isso, a par da sua genialidade, uma das suas principais características, bem como apontar de forma clara e directa, o que está mal na arquitectura actual e o que mudou.

Como vê o estado actual da arquitectura?

Há várias arquitecturas. A arquitectura que eu estudei, que comecei a praticar com os arquitectos, os meus professores… acabou. Não vou ser moralista “ aquilo no meu tempo é que era bom”, não é nada disso. Existiam determinadas condições que se alteraram. Portanto aquilo a que eu chamava arquitectura em que fui formado, hoje é impossível de fazê-la porque não há tempo nem dinheiro para a fazer dessa maneira e mesmo que houvesse, não há operários, não há artesanato, muitos dos nossos profissionais saíram do país. Existe outra maneira de a fazer, que eu no meu caso pessoal, não sei se devia dizer isto mas digo-o com toda a honestidade, falta-me a coragem, a energia para enfrentar aos 60 e tal anos. Essa nova visão de andar de avião todos os dias para ir para Xangai, para Singapura, passando por Luanda e acabando em Lisboa porque não há voos para o Porto, começo a ficar cansado só de imaginar. A profissão mudou completamente. Problema número um: toda a história da arquitectura é feita com um espírito ligado ao poder, só que antigamente havia o poder político, religioso e financeiro, neste momento há só um, o financeiro. O resto do poder não está muito empenhado. Antes, existia uma ou outra obra emblemática, do género do Centro Cultural de Belém, que acontece de 10 em 10 anos ou de 20 em 20. Hoje, fundamentalmente existe esta vocação financeira que faz alterar os timings, os sítios de aplicação de investimento e não é melhor nem pior, é diferente. Quer dizer, é como o futsal… o futsal é o tijolo do futebol não é o futebol que nós conhecemos. Não é pior nem melhor, é outro. Tal como o conceito de arquitectura que mudou completamente.

E o que acontece com as gerações novas?

As gerações novas - vou ser muito bruto, estou farto de dizer isso e acusam-me de ser desumano mas o facto é que o digo às minhas duas filhas que estudam arquitectura, são novas - vão ter de emigrar, não têm hipótese cá. Há 22 mil arquitectos em Portugal. Se os professores de ateliês ligados, formados e implantados aos partidos políticos não têm trabalho, quanto mais quem acaba um curso, que ainda não fez nada e sem experiência. Não há que inventar ou mitificar a situação.

Sobre a actuação da Ordem dos Arquitectos acha que houve aqui alguma evolução para a profissão?

Não. Começa é a existir uma preocupação, eu até apoiei e faço um forcing para se rever uma situação que é altamente injusta, o facto de não existirem tabelas de honorários, e aí os arquitectos são tratados como cães. Na Europa não é assim e nós fazemos parte da Comunidade Europeia. Por exemplo, a matriz que é sempre a Alemanha, tem uma tabela de mínimos. Ninguém pode apresentar um orçamento para fazer uma casa ou um prédio menos que é estipulado na tabela… em Portugal por exemplo, isso não existe e obriga a uma especulação total e uma humilhação completa da disciplina dos arquitectos. Neste momento, o que eu tenho feito no apoio que dou à Ordem é tentar contribuir para que se faça o mínimo de legislação sobre esse tema, que já não é um problema de direito natural. Quanto mais as pessoas cedem, menos se respeita o arquitecto. E a Ordem neste momento começa a levantar essas questões.

Foi um grande defensor da reabilitação urbana quando pouco se falava dela. Agora está na ordem do dia, portanto já antecipava um pouco o tema…

A história prova que as cidades crescem sobre elas próprias e ficam mais bonitas como por exemplo, Roma, Veneza, Florença… que são feitas com sobreposições. E porquê? Não tem sentido gastarem energias a partir do zero quando têm ali ao lado um edifício que pode ser relativamente alterado e mudado. Se uma cidade já tem ruas, praças, infraestruturas e edifícios abandonados, devem ser renovados porque existe uma malha que recebe exactamente esses programas. Isto passou-se em toda a Europa depois da guerra e Portugal que não esteve no conflito, já chegou atrasado. Só agora é que felizmente a reabilitação está a acontecer, sobretudo em Lisboa e no Porto. Apesar de nem sempre as coisas estarem a ser bem-feitas. Espero que no futuro melhorem, porque as operações de remodelação que estão a fazer são um pouco de 'cosmética'.

Também se tem criticado o facto de a reabilitação nos centros históricos servirem apenas para um público de uma classe média-alta e investidores estrangeiros. Concorda?

Discordo completamente porque a cidade é plural. Plural no sentido formal, no sentido temporal. O que é bonito na cidade é a diversidade de estilos, épocas e de pessoas. Eu não estou a falar entre os ricos e os pobres. Gente nova, terceira idade, classe média, média-alta e média-baixa, com culturas diferentes e quando se cruza isso dá exactamente esse pulsar que é o espírito urbano e isso é que é interessante.

No concreto para a profissão, para a arquitectura, para o imobiliário, o que interessa é que exista investimento. É da mesma opinião?

Claro. Por exemplo quando eu digo que aumentam esses projectos de reabilitação quer no Porto, quer em Lisboa, o que acontece é que no fundo há investimento. Agora, se na questão dos impostos e as taxas existirem muitas alterações… as pessoas têm medo e não investem. Sou de maneira geral optimista, mas não estou satisfeito, há situações que me revoltam, até há uma certa tomada de consciência dos problemas e muitas vezes não há meios para os resolver. Contudo, acho que estão a altear alguma coisa. No Porto pouco, mas em Lisboa há investimento, porque há mercado, hotéis, museus, depois há turistas e eles querem ver museus e fala-se em ampliar o Museu de Arte Antiga, fazer um museu novo de Arte Contemporânea porque há turistas e há público.

Não podemos perder o encanto que Portugal está a ter lá fora…

Considero que esse impulso que está a existir é muito bom, mas sem fazer os erros que os outros já fizeram, na Europa. Já sabemos que não se pode ter “sol na eira e chuva no nabal”, então não se pode ter tudo, quantidade e qualidade. Mas na qualidade devia-se ter mais preocupação e a Europa tem legislação que nós devíamos adoptar para permitir isso, a começar nos honorários e no número de peças técnicas e documentos. Isto não é só pagar bem, é também exigir aos arquitetos. Se não pagam não façam e aí a qualidade baixa.

Este boom leva a que muitas vezes a qualidade comece a baixar …

Porque é falta de tempo, isso aí não há milagres.