
"Relação perigosa” entre habitação e construção civil — alerta historiador-arquitecto
A promoção de habitação apoiada em Portugal, desde 1918 até hoje, tem permitido “uma relação perigosa” com a construção civil, sector que se tornou um motor “importantíssimo” da economia nacional, alerta o arquitecto e historiador Ricardo Costa Agarez.
“Há muitos momentos em que a habitação é vista, não apenas como um fim em si de providenciar habitação para as pessoas mais necessitadas, mas é vista como forma de incentivar a indústria da construção civil”, apontou o autor do livro “A habitação apoiada em Portugal”, que integra os ensaios da Fundação Francisco Manuel dos Santos e que é apresentado hoje em Lisboa.
Apesar de ter uma função social, a habitação assumiu, “nitidamente, uma função económica”, nomeadamente na “resolução dos problemas de carência de trabalho, crises de emprego cíclicas em Portugal, que tem a ver com uma assimetria e um desequilíbrio muito grande que há em Portugal de dependência da indústria da construção civil”, afirmou o historiador e professor no departamento de arquitectura da Universidade de Évora.
Em declarações à Lusa, o arquitecto contestou a construção, ciclicamente, de equipamentos que têm “utilidade muito duvidosa” em todo o país, na sequência da “dependência muito perigosa e viciada” na indústria da construção civil em Portugal, em que a habitação é “mais uma faceta deste poliedro curioso da economia portuguesa”.
Sobre o desafio do Governo de aumentar o parque público de habitação em Portugal, de 2% para 5%, Ricardo Costa Agarez considerou que “é possível e é urgente” fazer esse aumento da percentagem de habitação de propriedade do Estado.
Relativamente à meta de erradicação das carências habitacionais até aos 50 anos do 25 de Abril, em 2024, respondendo à necessidade de cerca de 26.000 famílias identificadas no levantamento nacional de 2018, o historiador da arquitectura e das cidades disse que, tecnicamente, é difícil, porque “é um horizonte já muito próximo” e implica concursos de empreitada, assim como uma série de implicações relacionadas com a contabilidade pública.
“Politicamente, penso que pode ser uma perspcetiva relativamente realista”, avançou o arquiteto que, além do livro, coordenou o projecto “Habitação: Cem anos de políticas públicas em Portugal, 1918 – 2018”.
“As discrepâncias entre o poder de compra em Portugal e os preços do arrendamento e do mercado imobiliário”
Além das carências habitacionais identificadas no levantamento nacional, Ricardo Costa Agarez destacou as outras carências, nomeadamente das pessoas que não conseguem viver em cidades como Porto e Lisboa “sem fazer um esforço em relação aos seus rendimentos, que é completamente indesejável, que é estarem a colocar 60% do seu rendimento do trabalho na habitação”.
Na perspectiva do historiador, os preços das casas arrendadas são consequência de “uma desregulação total ou quase total” do mercado de arrendamento, em que “houve um período de grande liberalização”, bem como o investimento no alojamento local.
Sem avançar com propostas concretas para dar resposta à crise habitacional, o professor de arquitectura da Universidade de Évora disse que, na perspectiva de cidadão, “é urgente e gritante” resolver a discrepância entre o poder de compra em Portugal e os preços do arrendamento e do mercado imobiliário.
“Temos um mercado imobiliário completamente globalizado, mas não temos um mercado laboral globalizado. O mercado laboral é aquele que temos, salários relativamente baixos e, depois, temos preços de arrendamento exorbitantes, porque estão ao nível global”, apontou.
Em relação ao Programa de Arrendamento Acessível (PAA), em vigor desde Julho de 2019 e que depende da adesão dos proprietários, Ricardo Costa Agarez defendeu que pode ser “mais uma medida de solução de recurso de emergência do que propriamente uma medida de fôlego e de longo alcance”.
“De certa maneira, há sempre uma tentativa de partilhar a responsabilidade, não é desresponsabilização, mas é partilhar a responsabilidade, que é saudável em si. O conceito de partilha da responsabilidade, neste assunto, não é indesejável, a responsabilidade deve ser partilhada”, ressalvou o autor do livro “A habitação apoiada em Portugal”.
O PAA é um dos instrumentos da Nova Geração de Políticas de Habitação, implementada pelo Governo em 2018, coincidindo historicamente com o aniversário dos 100 anos do primeiro diploma de habitação apoiada em Portugal.
Lusa/DI












