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Opinião

 

Direito do urbanismo, propriedade horizontal e alojamento local

10 de janeiro de 2017

Foi divulgado recentemente pela comunicação social o teor de um Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 20/10/2016, Acórdão este que, em suma, considerou ser incompatível com o disposto no título constitutivo da propriedade horizontal a afetação de uma fração autónoma a alojamento local quando o título em causa apenas prevê a utilização das respetivas frações para habitação.

Ora, como é sabido, constitui prática habitual das Câmaras Municipais, nos Alvarás de licença de utilização, indicar em termos genéricos o fim a que se destinam as frações, termos esses que acabam por ser automaticamente reproduzidos nos títulos constitutivos da propriedade horizontal.

Porém, um promotor imobiliário responsável devia saber acautelar a segurança dos adquirentes das frações de modo a evitar futuros conflitos em torno do uso das frações, muito especialmente numa época em que se multiplica a legislação avulsa sobre atividades económicas que requerem um espaço próprio para se instalarem e cuja instalação nem sempre se consegue compatibilizar, em termos das chamadas relações de vizinhança, com o uso dominante do edifício, que é quase sempre o uso habitacional.

É que, nada impede o promotor imobiliário enquanto instituidor da propriedade horizontal, no respeito pelo projeto licenciado pela Câmara Municipal, especificar no título constitutivo quais os ramos de comércio que podem ser exercidos no local.

Como bem assinala ABÍLIO NETO (“Manual da Propriedade Horizontal”, pág. 97, Ediforum, 2015), o que está vedado pelo nº3, do artigo 1418º do Código Civil é que se estabeleça algo diferente do que foi fixado no projeto aprovado pela Câmara Municipal, não que se possam estabelecer restrições ao que se encontra genericamente fixado no Alvará de licença de utilização.

Assim, não o fazendo, o promotor imobiliário está a perder uma oportunidade para clarificar, com segurança e rigor, o que é que se pode e o que é que não se pode fazer nas frações.

Em consequência desta falta de rigor na identificação das utilizações das frações, surgem com muita frequência litígios entre condóminos em torno da utilização das frações para comércio, serviços ou indústria, precisamente por não ser pacífico quais as atividades que se podem reconduzir a tais expressões genéricas.

O caso mais comum e por isso mais tratado pela jurisprudência cível reside na compatibilidade entre o exercício da atividade de restauração em fração cujo título a destina a comércio, sendo neste momento pacífico para o STJ que a atividade de restauração é uma indústria pelo que não é legalmente admissível a utilização de uma fração identificada no título para comércio para aí ser instalado um restaurante.

Sem prejuízo disto, a verdade é que, perante dúvidas suscitadas na interpretação do Título constitutivo da propriedade horizontal no que respeita ao destino das frações, o elemento que tem de se considerar senão decisivo mas pelo menos importante para atestar da compatibilidade da utilização de uma fração com o todo edificado é o seu uso dominante, designadamente, o uso habitacional.

Isto mesmo foi dito recentemente pelo STJ no seu Acórdão de 28/1/2016 onde se entendeu que “num imóvel predominantemente habitacional não se pode perder de vista que as frações não adstritas a habitação são em regra destinadas a atividades que pela sua natureza se compaginam com a vida das famílias e a tranquilidade e sossego que devem imperar nas zonas residenciais, designadamente durante as horas de repouso. Não são desejadas unidades cuja utilização determine uma afluência elevada de pessoas que perturbam a vida habitacional ou que sejam causadoras de ruídos, de odores ou de vibrações perturbadoras.”

A utilização de uma fração destinada a comércio pelo título, sem que o mesmo especifique que tipo de comércio é que pode aí ser exercido, terá assim que ter um uso comercial que seja compatível com o uso maioritariamente habitacional do edifício de modo a não ofender os direitos de personalidade dos residentes habitacionais (direito ao repouso, direito ao descanso, direito ao sossego, direito à vida privada, direito à vida familiar e direito à qualidade de vida) direitos estes tutelados pela Constituição da República enquanto direitos fundamentais – artigos 26º, nº1, 65º, nº1 e 66º, nº1.

É neste contexto que surge a questão da compatibilidade do alojamento local com o regime da propriedade horizontal em matéria de frações destinadas pelo respetivo título constitutivo a habitação.

O que a lei define para alojamento local

O Decreto-Lei nº 128/2014, de 29 de Agosto, no seu artigo 2º, nº1, define estabelecimentos de alojamento local como “aqueles que prestam serviços de alojamento temporário a turistas, mediante remuneração, e que reúnam os requisitos previstos no presente decreto-lei.”

No que diz respeito às modalidades do alojamento local o artigo 3º, nº1, do DL nº128/2014, estabelece que elas são três – moradia, apartamento e estabelecimento de hospedagem.

Quanto à modalidade de apartamento, dispõe o nº3 do referido artigo 3º que se considera apartamento “o estabelecimento de alojamento local cuja unidade de alojamento é constituída por uma fração autónoma de edifício ou parte de prédio urbano suscetível de utilização independente.”

Finalmente, no âmbito da mera comunicação prévia para efeitos de registo dos estabelecimentos junto das câmaras municipais, entre os documentos que deverão constar da mesma está a autorização de utilização ou título de utilização válido do imóvel – alínea a), do nº1, do artigo 6º, do DL nº 128/2014.

Assim sendo, resulta do DL nº 128/2014 que o alojamento local na modalidade de apartamento que incida sobre uma fração autónoma tem de estar legitimado por uma autorização de utilização referente à fração ou ao imóvel, já que, como é sabido, as autorizações de utilização podem ser emitidas tanto para frações autónomas como para os edifícios onde elas existem – artigo 66º, nº1, do RJUE.

Efetuada a mera comunicação prévia, a câmara municipal no prazo de 30 dias a contar da apresentação da mesma, realiza uma vistoria para verificação do cumprimento dos requisitos previstos no artigo 6º DL 129/2014, podendo o Presidente da Câmara, detetada pela vistoria o não cumprimento de tais requisitos, proceder ao cancelamento do registo do alojamento local.

Ora, como foi dito, a prática das câmaras municipais tem sido, até agora, a de não colocarem quaisquer obstáculos ao explorador do estabelecimento de alojamento local na modalidade de apartamento, quando da respetiva autorização de utilização resulta que a fração se destina a habitação, precisamente por entenderem não existir incompatibilidade entre o uso habitacional e a utilização da fração para serviços de alojamento temporário para turistas.

Porém, não foi esse, como se viu, o entendimento adotado pela Relação de Lisboa no já citado Acórdão.

Para a Relação de Lisboa, a atividade do alojamento local é uma atividade comercial, logo, não compatível com uma fração destinada a habitação pelo respetivo título constitutivo, sendo irrelevante que tenha ocorrido autorização do respetivo serviço de finanças, da câmara municipal territorialmente e do Turismo de Portugal IP, dado que, no seu entender, as autorizações das entidades administrativas não têm a  virtualidade de alterar o estatuto da propriedade horizontal constante do respetivo título constitutivo.

Assim, no raciocínio jurídico da Relação de Lisboa, caso a fração se destinasse a comércio, não se colocaria qualquer problema de incompatibilidade legal entre a atividade do alojamento local e o respetivo título constitutivo.

Mas estando a fração identificada como habitação no respetivo título, não é possível utilizá-la para o exercício de uma atividade comercial.

Contudo, a Relação de Lisboa, seguindo aliás uma jurisprudência uniforme, acrescenta mais um dado à questão, a saber, a irrelevância de um eventual licenciamento administrativo que permita a reutilização da fração por parte do seu proprietário. 

O ponto central de toda esta questão reside precisamente aqui: o destino original dado às frações pelo título constitutivo da propriedade horizontal, destino esse, é bom não esquecer, para o qual contribuiu decisivamente um anterior licenciamento urbanístico por parte da competente câmara municipal.

O título constitutivo da propriedade horizontal vincula todos os condóminos no que toca ao destino das respetivas frações.

Acontece que é entendimento pacífico entre os administrativistas que, no domínio do licenciamento urbanístico, não compete às câmaras municipais fiscalizar o cumprimento das normas de direito privado em matéria de direitos reais, pois os motivos de indeferimento de um pedido de licenciamento previstos no RJUE não contemplam uma tal hipótese.

Câmaras municipais devem alertar o proprietário para obterem o consentimento dos condóminos

É por isso que ao licenciar uma nova utilização de uma fração de prédio constituído em propriedade horizontal, as câmaras municipais devem alertar o proprietário que antes de dar início à nova utilização a fração deve procurar obter o consentimento dos condóminos, solicitando à Administração convocação de assembleia para o efeito, dado que o novo licenciamento constitui apenas o primeiro passo para modificar o título, sendo o segundo passo constituído pela autorização dada pela respetiva assembleia de condóminos  - artigo 1419º, nº1, do Código Civil.

Surge aqui, mais uma vez, a interação entre o Dto. do Urbanismo e o Dto. Civil, pois a nova utilização da fração não pode ser feita sem o prévio licenciamento municipal, assim como, por sua vez, a autorização dos condóminos não constitui, por si só, a permissão para uma nova utilização.

Esta só será inteiramente válida, encarando a ordem jurídica na sua globalidade, obtida a autorização do condomínio, à qual se seguirá o licenciamento municipal, caso a fração reúna as condições técnicas para uma utilização diferente da anterior.

A doutrina do Acórdão, há que reconhecê-lo, vem lançar alguma insegurança ao sector do alojamento local, pois, a partir de agora, os empresários do setor, antes de darem início à utilização das frações de que sejam proprietários, e admitindo que o título destine a fração em causa a habitação, deverão procurar obter previamente a autorização do condomínio, sob pena de, no futuro, virem a enfrentar dificuldades no exercício da sua atividade, agora que a doutrina do Acórdão da Relação de Lisboa foi divulgada pela comunicação social alertando outros condomínios que vejam com maus olhos a utilização das frações para alojamento local.

Alojamento local tem ajudado na reabilitação urbana

Anunciando-se para 2017 uma nova alteração ao regime jurídico do alojamento local, importará que o legislador tenha em conta que foi este regime que permitiu a recuperação de muito do edificado que se encontrava em estado de abandono nos nossos centros urbanos, em particular, nos bairros tradicionais de Lisboa, pelo que uma tal alteração não deverá ser castigadora de uma atividade económica que se revelou ser de sucesso, mas antes uma forma de a conciliar com a utilização dominante em edifícios de habitação, no respeito pelos direitos de personalidade dos proprietários que utilizem as suas frações para habitação permanente do seu agregado familiar, o que, passará, inevitavelmente, por uma alteração ao regime jurídico da propriedade horizontal previsto no nosso Código Civil.

Julgamos ser possível e ser sensato que o legislador leve a cabo uma tal conciliação. 

*Texto escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico

José Miguel Sardinha

Advogado